Duvida


De que será foi feita toda essa água?
E essa mágoa que corrói
Terá a manhã me perdoado
Por tê-la trocado pelas tardes de sábado?
Tudo isso dói.
Tudo isso sangra.
Sinto receios, tenho medo do fim.
Tem a questão da morte
Mas não é isso que me preocupa.
Não tocar o céu, ou ver as estrelas
Não ouvir o mar, ou ela respirar
Desejar pra sempre
E uma hora acabar.
Se a minha consciência
Me deixasse de lado
Se toda essa lógica
Abrisse a porta e partisse
Se eu pudesse então
Vê-la brilhar
Será o que será
Não vou duvidar.

Eu Físico


E então, seu eu físico desprendia-se de seu eu interior. Todos os responsáveis pelo processo de armazenamento e construção de sua personalidade agora trabalhavam em conjunto para transpor a linha tênue que separa o mundo denominado “material” para o mundo erroneamente denominado “espiritual”. Na verdade, tudo não passaria de um processo físico, por hora inexplicável, que levaria toda a informação que compunha quem ele era para outro local.

Todas as lembranças, ideias, pensamentos e personalidades seriam compactadas em um único fim, o qual seria a forma não física que o representaria à partir dali. Sua mente usava então sua última carga de energia para buscar em todos os universos um local apropriado para uma vida infinita e utópica, onde poderia estabelecer-se para sempre. Porém a busca logo termina, pois, em nossa evolução, todo o processo de busca ficara gravado no DNA humano, assim tornando todo o processo de busca demasiadamente mais curto.

Compactado o seu ser e encontrado o local, agora restava apenas a migração para a nova realidade.

Lá havia o que, para qualquer ser humano, seria a representação do nada. Uma imensidão branca, reluzente, pacifica e tranquila. Pessoas de todas as formas e cores caminhavam para todas as direções, expressando o que o ambiente transmitia: paz. Ele percebia que conhecia detalhes espalhados pela imensidão branca: edifícios e mares, praias e florestas compunham a parte plana da imensidão, algo como memórias de nosso mundo, vivas e físicas.

Vivenciado o local por dias, ele agora podia avistar personalidades famosas de nosso mundo. Pessoas da música, da pintura, do esporte e da arquitetura, todas caminhando como cidadãos normais em um dia qualquer de suas vidas. Via também que, enquanto algumas pessoas apontavam para lugares apenas preenchidos pelo branco reluzente, nestes cresciam do nada, memórias de nosso mundo. Estátuas e castelos compunham o que aparecia. Ele entendia que a imensidão era preenchida por memórias de pessoas que, como ele, já não pertenciam mais ao planeta Terra.

Após meses vivenciando a imensidão branca, agora ele compreendia a essência daquele lugar: sua mente desprendera de seu corpo físico e migrara para uma realidade em outro universo, onde as leis da física não se igualavam às nossas. Entendia agora que, na Terra, sua vida valeu apenas para a construção de seu ser, e que, naquele lugar, viveria para sempre, estável e imaterial. Compreendia que a morte não era nada além de um processo matemático e palpável, algo simples e natural. 

Peça inútil

    Sentimentos que me afligem pairam sobre esta coroa de espinhos. Como lidar com estes medos, estas vontades... Estes arrependimentos. A vida me parece um tanto frágil, instável, nunca caminhando em linha reta. Basta um olhar ou palavra, e tudo está diferente.

    Houve um tempo em que se poderia dizer que o Sol amanheceria sem consigo trazer receios. Houve um tempo em que viver valia a pena, ou pelo menos se valia a pena continuar buscando como se viver. Hoje algo parece ter mudado. Saber que um futuro incerto caminha engolindo sonhos e desejos, algo imposto pela sociedade hipócrita que te faz se sentir inútil, isso faz com que a vontade de continuar seja insignificante. De que vale viver sem motivos?

    Não sei o quanto mereço estar vivo...

    Nunca saberei se este último autorretrato será usado como estampa da lápide anunciando minha morte.  Não saberei se esta será minha última ideia impressa, se as roupas que visto serão as últimas antes do terno escuro coberto por flores que exalam o odor doce e suave da morte. A vida é incerta, tanto quanto a morte. É um jogo onde sempre o mesmo lado irá ganhar, e garanto que este não é o seu.

    Imagine que o corpo humano seja a peça mais frágil de todo este jogo chamado vida, e que um desses corpos podem ser seus pais, seus irmãos ou seus amigos. Já pensou quão dura será a partida? Já imaginou a despedida de quem mais se ama, para nunca mais vê-la? A vida pode ser bela, mas há uma beleza sádica aqui, uma beleza que não nega esforços para testar sua força, sua vontade e seus objetivos.

    Se há uma peça sem propósitos que valham a pena, jogue-a como benefício para outra maior. Não seja esta peça, não quero ser esta peça, espero nunca presenciar a hora em que esta peça for usada. 

Manhã

Nasce a luz
As cores mudam.
Muda o azul, o verde e o laranja
O amarelo e o lilás também se encontram
Em instantes todas as cores dançam.

Acorda os galos e os trabalhadores
Aquela gente que a gente insiste em não perceber.
Pede licença à névoa gélida
Que aceita sem se enfurecer.

Deixa aquele cheiro suave
Que de memórias distantes
De momentos felizes
Faz sorrisos aparecer.

As árvores balançam
Acordam os pássaros
Tratam de voar e cantar 
Gritar e abanar.

O silêncio não existe mais.

Sinal de vida.

Alegria no ar.

Um forte azul se entranha
Chega de manha
Chega a manhã.

Gente reclama 
Gente se alegra 
Mas sem muito pensar 
Todos percebem que mais um dia acaba de acordar.

Vocação


Queria ser escritor, mas escrever eu não sabia. Queria ser professor, mas o que ensinar não havia. Tentei então ser escultor, mas minhas obras ninguém entendia. Por fim, restou-me o amor, que há muito eu não vivia.

Lembrei-me então da dor e da mágoa que ele trazia, assim sentei-me ao canto e logo me veio uma melodia. Melosa e suave, mas que tristes recordações trazia. Então, veja só que emoção, encontrei minha vocação: depois de muito tentar, percebi que sabia compor uma linda canção.

Cantei num barzinho e todo mundo gostou, logo ouvi de longe, baixinho: "olha só meu sinhô, veja só que bom compositô". Larguei minha vida e lancei-me na estrada, não passou muito tempo e minha melodia se encontrava nas paradas.

Era autógrafo, era fã, era coisa que não acabava mais, talvez não fosse isso que eu buscasse tempos atrás.

Já cansado e abatido, encontrei um velho amigo: um fazendeiro muito bem-sucedido. Olhei com atenção e vi sua expressão: suave e despreocupado, com muita felicidade no coração. Que inveja que senti, tenho que admitir; imagine se fosse eu que estivesse ali? Não foi nem um dia e logo me veio a euforia: larguei tudo outra vez com convicção, estava decidido a voltar para o sertão.

Chegando lá meu amigo, você nem vai acreditar, estava tudo tranquilo e nenhum autógrafo teria de dar. Sabia agora que ali era minha vida e dali nunca devia ter partido, sabia agora que dali jamais haveria de mudar.